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A Saga do Herói Guerreiro

Estávamos em Outubro de 2014 e José Sócrates corria, como habitualmente fazia todos os dias, o seu jogging matinal pelo 16ème arrondissement de Paris. Após passar o Trocadéro, com a Torre Eiffel em pano de fundo, dirigia-se agora para o Hotel des Invalides, local que, para além de significar o ponto de inversão de marcha, e o consequente regresso a casa, permitia uma silenciosa homenagem a Napoleão Bonaparte, ali enterrado e um guia espiritual para o agora também exilado líder político português. Postando a sua mão direita sobre o ventre, naquele momento, e como em todos os outros em outras manhãs ali passadas, Sócrates ainda se imaginou capaz do regresso triunfal.

Era um dia chuvoso de Outono e Paris estava estranhamente quieta. Não circulavam carros, os passeios permaneciam vazios de pessoas. Curiosamente, apenas se tinha cruzado com três Vespas conduzidas por motociclistas vestidos de azul riscado, com boinas encarnadas e carregando sacos repletos de enormes, e cheirosas, baguettes amareladas. José Sócrates também corria com uma boina encarnada e um fato de treino branco com riscas azuis. ‘Quando em Paris, sê parisiense’, sempre dissera. ‘Mas, com estilo’, acrescentava com aquele sorriso trocista enquanto mostrava a etiqueta Boss cosida pelo motorista no lado de fora da sua boina. ‘É a marca que melhor me assenta’, dizia Sócrates aos seus amigos e correligionários: ‘Afinal, o Boss aqui sou eu!’. E ria muito. Os outros riam mais ainda.

Naquele dia, Sócrates e a sua boina encarnada corriam com invulgar rapidez. Parecia que voava sobre o empedrado centenário. Nos momentos em que corria, José Sócrates amava particularmente a adrenalina que, acelerando o sangue bombeado pelas veias para o seu cérebro, soltava-lhe livremente a imaginação. A partir daí, sonhava com os feitos enormes que ainda haveria de alcançar. Naquela manhã, pensava sobre as eleições presidenciais de 2015. E delineava o seu plano perfeito para conseguir unir a esquerda toda em redor do seu nome e bater a direita à segunda volta. Aí seria Presidente da República! Mas, contrariamente ao que seria uma honra para o comum dos mortais, para José Sócrates ser Presidente da República não significava nada mais além do que um primeiro passo rumo ao seu verdadeiro e último objectivo: a reconquista do poder perdido em 2011 para a direita. Nesse momento, ao lembrar-se dos resultados eleitorais de 2011, Sócrates tropeçou e quase caiu. ‘Canalhas!’, gritou em voz alta. Depois, ainda parado e semi-ofegante, lembrou-se que estava em Paris e, de punho no ar, emendou mais alto: ‘Canálhes!’. E, ajeitando a boina, recomeçou a correr.

Rapidamente, à medida que a adrenalina voltava a exaltar o seu espírito conquistador, José Sócrates recomeçou a magicar o que poderia fazer quando fosse Presidente da República. ‘Primeiro’, pensou ele, ‘vou fazer o impensável e candidatar-me a Secretário-Geral do PS’, e começou a rir-se. ‘Essa é que ninguém vai estar à espera!’, acrescentou, mas agora em voz alta. ‘Depois’, continuou ele em pensamento murmurado, ‘vou distribuir cargos e mais cargos até conseguir controlar os grandes partidos, ah! vou comprá-los a todos! e…’, quase se engasgando numa risada que lhe aflorava a garganta, ‘… aí é que vai ser: vou mudar a Constituição para um regime presidencialista!’, rindo-se mais ainda. ‘Melhor’, continuou ele, ‘um regime presidencialista onde o Presidente tenha mandatos ilimitados’. E, aí, o riso transformou-se em gargalhada, uma gargalhada crescente até que, em voz muito alta, já em risota escarcalhada, teve que parar de correr para, agarrando-se a um candeeiro de rua, poder aliviar-se do riso à vontade.

José Sócrates esgargalhava-se agora ao mesmo tempo que, agarrando a barriga, exclamava: ‘vou dar cabo daqueles canálhes todos!’, e, ali sozinho, numa Paris misteriosamente abandonada, berrava mais ainda, cada vez mais excitado pelo eco cavernoso que o túnel pedonal onde se encontrava dava ao seu devaneio. Ao fim de uns minutos, uns metros mais à frente, já depois de se ter sentado no passeio por não aguentar tanto rir, Sócrates levantou-se e, pegando na boina encarnada que entretanto havia caído no chão, recompôs-se, arrotou, e retomou a corrida.

Entretanto, começou a chover. A José Sócrates irritava-lhe a chuva. Por essa razão, o riso deu lugar ao agastamento. Enquanto corria, já em passo muito estugado, José Sócrates irava-se agora zangado com o seu fado de ter que correr à chuva e, pior ainda, molhar a sua boina encarnada Boss. Começou, naturalmente, de punho novamente erguido mas desta feita a olhar para o céu, a reclamar com a chuva. ‘Pute!’ gritou ele, ‘Canálhe!’, acrescentou. E, aliviado, acelerou de regresso a casa.

No elevador do seu prédio, um José Sócrates ensopado murmurava agora que se era para andar à chuva, de facto, mais valia ser em Paris: 'pelo menos é chuva Evian’, declarou ele para a audiência que ali imaginou estar enquanto ajeitava o cabelo molhado e olhava o espelho do elevador. Haverá melhor audiência do que si próprio? Piscou o olho à imagem do espelho, e saiu para o corredor.

Entrando em casa, sacudiu-se, abriu várias torneiras de ouro e preparou-se para tomar um muito merecido banho de imersão. Nessa altura, enquanto as fragrâncias dos sais começavam a espalhar-se pelo ar, começa a tocar, muito ao de leve, um alarme despertador. José Sócrates estranhou, mas não se incomodou.

Após o banho, Sócrates atravessou a luxuosa sala com pé direito de quatro metros e meio até à cozinha. Aí, descalço, mas confortado pelo pavimento aquecido, abriu o frigorífico SMEG côr de rosa e tirou uma apetitosa sandes de camembert fumado com tomate cereja e rúcula que a sua governanta ali havia deixado para si. Entretanto, o alarme despertador começou a ficar cada vez mais sonoro. José Sócrates intrigou-se. Que alarme seria aquele? E por que razão estaria a crescer cada vez mais de tom? Encolheu os ombros e procurou dar uma dentada na sua sandes. Não conseguiu. ‘Que coisa esta…’, estranhou ele. Tentou de novo. Era rija. Não se despegava. Tentou outra vez. ‘Mas que raio…?’. E, ao mesmo tempo, o alarme subia de tom, estava agora estridente. Sócrates, subitamente, empalideceu. Algo estava errado. Algo estava tremendamente errado. E o alarme despertador deu lugar a uma sirene, e a sirene subiu e subiu de tom até que explodia agora em vagas sonoras estridulantes que faziam Sócrates deitar-se no chão, agarrando-se à sua sandes e à sua própria cabeça.

Foi nesse momento que, de súbito, como que sugado por um vórtice espácio-temporal, José Sócrates viu a sirene explodir com o seu apartamento, e consigo também, fazendo com que em nanossegundos se visse atirado num caleidoscópico de cores pelo tal vórtice, directo do seu confortável apartamento no 16ème arrondissement para um chão de cimento, frio, duro, empoeirado, desconfortável e mal cheiroso.

Ainda agarrado à sua sandes de camembert, Sócrates deu por si estirado no chão. Parecia que tinha caído de uma altura de dez andares tais eram as dores que lhe percorriam agora o corpo. Abriu os olhos e, destrambelhado, não reconheceu onde estava. ‘Mas…’, murmurou ele, ‘que raio se passou?’. Levantou a cabeça e olhou em volta: era um cubículo minúsculo todo em cimento por pintar e ele, Sócrates, estava virado para uma retrete meio partida, sem assento, salpicada de castanho e com um pedaço longo de papel higiénico que, saindo do seu interior, se desenrolava pelo chão. ‘Mas que raio…’, repetiu entre dentes.

Voltou a cabeça e viu uma porta gradeada. Do outro lado, a escuridão do desconhecido. Olhou para as suas mãos, aquelas mesmas que apenas um instante antes agarravam a sua saborosa sandes de camembert com tomates cereja e rúcula, e viu uma sapatilha branca suja, de pano furado na ponta e com sola de borracha. Não admira que não a conseguisse mastigar! Assustou-se com o nojo e, dando um grito, atirou com o sapato para longe. Por azar do destino, a sapatilha foi embater na parede e, de seguida, com um splash pastoso e seco, caiu dentro da retrete.

No entanto, naquele momento, José Sócrates, desorientado, profundamente perturbado, não se incomodou com tal coisa. Um sapato numa retrete cheia de bosta era o menor dos seus problemas. Desalentado, virou a cabeça para baixo e, olhando para o seu corpo, ficou ainda mais admirado: o casaco de casa, cortado em veludo e seda por medida com o seu monograma no peito, tinha agora dado lugar a uma camisa branca muito deslavada e que lhe estava nitidamente grande demais. Era lisa, mas uma mancha aparecia-lhe no peito. Na penumbra não se via bem o que era. José Sócrates agarrou a mancha e, puxando-a para si, focando a visão com o esforço de um monge copista, conseguiu ler o que a sua camisa ali tinha escrito em letras estampadas: o número 44.

2

Um Animal Feroz Enjaulado

José Sócrates estava, para dizer o mínimo, assoberbado com o que lhe tinha acontecido. Encostado a um canto da sua pequena cela, imerso na escuridão espessa de humidade e apenas com a companhia de um cheiro fétido exalado daquela retrete, o líder político encolhia-se assustado. Afinal de contas, ainda há uns poucos momentos corria livremente por Paris para, em breves segundos, ver-se involuntariamente atirado para aquela cela, aparentemente após uma tentativa frustrada de mastigação de um dos seus próprios sapatos, precisamente aquele que, nem sendo de marca, jazia agora ali dentro daquela suja sanita. 

Para Sócrates, até aquele triste momento, a vida nunca tinha tido muito mistério. Um prático, engenheiro de formação e arquitecto de génio e paixão, sempre fora fácil ver a vida tal como ela é e, naturalmente, tomar partido disso. Fizera-se licenciado, mestrado, homem rico, bem vestido, poderoso, à frente dos destinos de um país inteiro e, por isso, habituado a tudo o que há de bom e melhor à distância sempre curta de um singelo estalar de dedos. E, agora, a desgraça. A queda. Nada daquilo poderia ser verdade. Uma conspiração dos seus inimigos, certamente. Um devaneio mental fruto de algum desequilíbrio químico, quiçá, por ventura. Agora, verdade, verdade?, isso não. Gemeu.

‘Mas’, perguntava-se ele repetidamente, ‘como foi que isto aconteceu?’. E abanava a cabeça, encolhendo-a ainda mais por entre os joelhos enquanto se deixava encobrir na humidade escorrida pela parede áspera de cimento. ‘Que faço eu aqui?’, continuava na sua natural confusão. Começou a abanar-se para a frente e para trás. E assim ficou durante longos minutos: abanando-se, como que procurando conforto no balanço reminiscente do colo maternal. No entanto, infelizmente e para mal dos seus pecados, o aconchego do útero materno, o zénite da segurança e do amparo humano, apenas existia na sua esperançada, e desmedida, imaginação. Agora, vendo esse mesmo útero materno, a fonte suprema de refúgio e de protecção, subitamente transformado naquela caverna sem fundo, apenas amparado pelas sombras e pela solidão, José Sócrates chorou.

Repentinamente, as luzes do corredor iluminaram-se. Começou a ouvir-se um grande estardalhaço. Como que causado por um bastão a percorrer de forma contínua as barras das diversas grades que compunham aquela ala da prisão, um ruído metálico e perturbante assolava agora as paredes de cimento, ecoando numa distância progressivamente encurtada. À medida que o barulho aumentava de intensidade, indicando a aproximação do causador de tal perturbação sonora, Sócrates ia saindo da sua comoção letárgica. Primeiro, concentrou-se no som, parando de abanar-se. Depois, levantou a cabeça e virou os ouvidos em direcção à porta da sua cela pondo-se à escuta. Finalmente, levantou-se e, curioso, foi colocar-se de pé agarrando as grades, com a cabeça a tentar passar o mais possível pelo meio delas para tentar ver, e ouvir, o que se passava. Não conseguiu. Mas o ruído sibilante do bastão continuava a aproximar-se! E José Sócrates, o grande líder político, assustou-se e fugiu para a segurança do fundo húmido e mal-cheiroso da sua cela. 

Quando o guarda chegou à cela do prisioneiro 44, estancou o passo, bateu os pés numa pancada de solas perfeita e, com o poder de tamanho movimento, fez reinar o silêncio profundo por todo o edifício. José Sócrates, do fundo da sua cela hesitava entre a curiosidade e o medo. ‘44!’, gritou o guarda, ao que Sócrates respondeu encolhendo-se mais no seu canto tentando passar despercebido. '44', repetiu o guarda numa voz rouca, mas acutilante. Desta feita, apenas com um olho aberto, Sócrates, o guerreiro, gemeu. A humildade conferida pelo gemido pareceu satisfazer o guarda que numa voz mais baixa, ainda mais rouca, explicou de forma curta: ‘tens uma visita dentro de cinco minutos’. E afastou-se. Aí, Sócrates impeliu-se à acção: levantou-se num ápice e correu em direcção à porta gradeada. 'Ó... ó... ó senhor Guarda', gaguejou ele, 'quem é... quem é que vem cá...?', indagou a medo. O guarda parou e, sem se voltar, explicou: ‘É o Rei, pá’, respondeu-lhe secamente. E durante os minutos seguintes Sócrates concentrou-se em matutar sobre quem seria a majestade que o viria visitar. 

Passados cinco minutos, ligou-se o altifalante da cadeia e uma melodia metálica e ferrugenta começou a ecoar por todo o edifício. Era o hino nacional. José Sócrates, de imediato, levantou-se e colocou a mão no peito e, durante aqueles oitenta segundos, cantando em plenos pulmões, recuperou energias e foi de novo o Primeiro-Ministro de Portugal! 

Assim que o hino terminou, ouviu-se o estrondo de um grande portão a abrir, imediatamente seguido do alvoroço de dezenas de pessoas que numa grande algazarra gritavam e cantavam ‘urras’ e ‘vivas’ à personagem que, na frente deles, em jeito de líder, avançava de forma sublime pelo corredor central da cadeia que, agora, com a solenidade que se pressentia na atmosfera pesada, mais parecia a nave central de uma catedral. Atrás da multidão, vinha uma banda. Rufavam tambores, sopravam-se trombones e trompetas e, pelos papelinhos multicolores que começavam a esvoaçar pela cela de José Sócrates adentro, percebia-se que os confettis explodiam do tecto. Era um arrebatamento de cor, uma explosão de música, um tumulto de alegria!, aquilo que, com o vagar próprio do elemento majestático, se dirigia tranquilamente na direcção da cela de José Sócrates. 

Perante tamanha agitação, o prisioneiro 44, mesmo que desorientado e sem perceber muito bem o que ali se estava a passar, ou sequer quem seria tão prestigiosa e poderosa personagem, preocupou-se em ajeitar a sua camisa 44 e sacudir o pó das suas calças 44. Aí, apercebeu-se que tinha calçado apenas um sapato e que o outro se encontrava dentro da retrete. 'Merde', exclamou em pânico esticando-se logo para ir buscá-lo. Infelizmente, a visão daquele sujo recipiente, conjugada com a chegada iminente de tão eminente personagem, fê-lo perceber que tamanho desiderato seria impensável, estancando-se, imóvel como uma estátua. O animal feroz tinha dado agora lugar a um animal estático, como que um veado subitamente encadeado pelos faróis de um automóvel numa estrada escura.

Ao sentir que a multidão exultante se aproximava mais, Sócrates abanou a cabeça com vigor e tirou-se corajosamente do seu momento letárgico. ‘Não posso ir ver o Rei com um sapato a cheirar a merda’, pensou ele. No ápice seguinte, lembrou-se de uma solução: se não posso ter dois, não tenho nenhum, e rapidamente se agachou e descalçou o seu sapato direito, atirando-o para o fundo da cela. Por azar, o sapato, que tinha sola de borracha, tal foi a força com que foi atirado, fez ricochete no chão e, num salto imprevisto, como que impelido por uma mola, acabou por ir cair com um splash pastosamente seco dentro da retrete também. 

‘Arghh’, rugiu o presidiário 44, ‘Pute!’, berrou ele brandindo os braços para o tecto. Mas, apesar de colérico como um animal enjaulado, Sócrates teve que controlar-se, engolir a raiva entretanto espumada e, mesmo tremendo num misto de medo e fúria, virar-se de frente para a grade. O Rei estava a chegar.

A parada continuava a tocar, os ‘vivas’ e os ‘urras’ continuavam a ecoar, mas tudo isso chegou ao fim quando uma sombra se assomou daquela porta gradeada. Já habituado à escuridão, José Sócrates não conseguia definir bem quem era aquela magnífica personagem que ali estava do lado de fora a olhar para dentro da cela. Confrontado com a luz exuberante, José Sócrates apenas conseguia distinguir os reflexos resplandecentes e magníficos dos brilhantes que o Rei trazia cosidos nas vestes. Estas, grandiosas e plenas de magnificência, tão sedosas como apenas os mais finos e opulentos tecidos índicos permitiam ser, ofuscavam agora o andrajoso presidiário com o seu sumptuoso fausto.

Sócrates esfregou os olhos para tentar ver melhor. E, nesse momento, quando a ira tinha dado completo lugar à admiração e à curiosidade, a porta abriu-se e a veneranda figura, firmemente acompanhada por uma infinitude de raios cintilantes, finalmente entrou. Como um poderoso raio estelar, o Rei, afugentando as trevas com o seu mero existir, trouxe consigo uma brusca iluminação do esconso espaço a que José Sócrates se via confinado. Ao fim de uns breves segundos de habituação, naquilo que pareceu uma eternidade, o prisioneiro conseguiu finalmente descortinar quem era o seu magnífico e esplendoroso visitante. Era, de facto, a grandiosidade transfigurada em pessoa. Era ele próprio, em carne e osso: Mário Soares.

3

Uma Cimeira Conspirativa

‘Então rapaz, como vai isso?’, perguntou o excelso Soares num tom paternal e afável enquanto mirava com nojo aquela cela exígua e suja. Sócrates empertigou-se e, levantando a cabeça, retorquiu com a voz mais forte que conseguiu: ‘tudo porreiro, pá’. Ao mesmo tempo, pensava: ‘porra, não posso dar parte fraca, o ataque é a única estratégia!’.

‘Ainda bem, filho, ainda bem, pá’, recomeçou Soares, espreitando na direcção da sanita e não escondendo a surpresa de lá ver enfiados dois sapatos. Em seguida, olhou para os pés de Sócrates e, vendo-os descalços, comentou: ‘está calor, hein?’. Sócrates respondeu de imediato: ‘bastante, bastante, pá, não se aguenta’ e, para comprovar que tinha calor, começou a desabotoar a camisa. ‘Ufa, isto é uma choldra que não se pode, estava bem era em Paris’, acrescentou, abanando as golas. O outro, ao ouvir a referência à cidade luz, anuiu com a cabeça e rasgou-se em sorrisos. ‘Ahhhhh, Párris, Páaaarris, pá, que saudades!’, exclamou o velho nonagenário. ‘Sabes Sócrates, pá’, continuou Soares, ‘foi lá que fiz os melhores amigos da minha vida, pá: o Mitterrand, pá, foi o maior deles todos, que saudades do mon ami Mitterrand…’, e a voz sumiu-se-lhe num assomo de nostalgia, fechando os olhos e relembrando os tempos felizes da sua juventude.

Sócrates respeitou o silêncio régio e, aguardando uns segundos para que Mário Soares apreciasse o momento, resolveu abotoar a camisa de novo, estava com frio. Esperou pacientemente, no entanto, passados trinta segundos, Soares adormeceu de pé.

Sócrates admirou-se com a magnífica capacidade atlética demonstrada pelo nonagenário que lhe permitia dormir de pé. ‘Magnânimo!’, pensou ele, ‘um portento!’, admirou-se ainda mais. ‘Quando for velho espero conseguir fazer a mesma coisa!’, desejou. E quedou-se enfeitiçado pela beleza rara que compunha o espectáculo esplêndido do velho estadista vivendo o sono dos justos mesmo à sua frente. 'Nem paguei bilhete!’, encantou-se Sócrates. 

No entanto, passados dois minutos, aborreceu-se. ‘Então este paspalho vem para aqui dormir na minha cela a fazer-me perder o meu importante tempo?’, irritou-se ele. Aproximou-se do monumento vivo que dormitava levantado na sua frente e, chegando-se bem perto: ‘ó pá, olha lá que não tenho dia todo!’, gritou-lhe Sócrates às orelhas. Soares, num ápice, recomeçou como se não fosse nada: ‘era o maior, sabes Sócrates, pá, Mitterrand era um tipo esperto, pá, cheio de truques’, e riu-se. ‘Aliás’, continuou Soares, ‘tantos truques tinha quantos filhos espalhados pelo mundo inteiro’ e, dando cotoveladas no outro, riu-se mais ainda. 

Mas Sócrates não se riu, mesmo que tivesse apreciado a excelente piada. Humor daquele gabarito, tal como ele estava farto de dizer, é que era. Mas, agora, estava farto. Não estava com humor para piadolas, por melhores que fossem nem por mais classe que tivessem. ‘Vá lá, pá, diz-me lá ao que vens’, inquiriu ele com rispidez. Soares surpreendeu-se com o tom agressivo e olhou-o de soslaio. Mas, magnânimo, com a destreza emocional que os anos lhe conferiram, fintou o desaforo e resolveu passar a assuntos sérios. ‘Olha lá, pá’, começou ele, ‘venho aqui para pedir a tua ajuda’. E, em seguida, com ar hesitante, calou-se. Sócrates, apercebendo-se do impasse, com medo que o outro adormecesse de novo, instou-o: ‘anda lá, anda lá, pá’, e Soares, abriu o jogo. 

‘É o PS, pá’, disse, ‘está em maus lençóis, o nosso querido partido está há demasiado tempo na oposição!’, e choramingou. ‘Ai, Sócrates, pá, que saudadinhas tenho eu de quando tu eras Primeiro-Ministro e a gente mandava nisto tudo, não faltava o dinheirinho, lembras-te? Até pus uma tartaruga lá no jardim da fundação para eu passear nela!’. O outro assentiu. ‘Nem imaginas, pá’, respondeu Sócrates, ‘é uma desgraça, pá, olha para mim aqui…’, concluiu ele percorrendo, em jeito de apresentação, o espaço da sua cela com o braço direito. E, postados nos braços um do outro, choraram muito os dois. 

Depois de uns minutos de fraterna igualdade entre camaradas, acalmaram-se. Enquanto Soares puxava de um lenço de seda de Macau para enxugar as lágrimas, o outro quebrou o silêncio: 'mas', começou Sócrates, ‘o que está afinal de errado com o nosso PS?’, inquiriu. ‘Ó pá, sabes lá tu, pá’, respondeu o outro, ‘o cabrão do Costa, pá, que não descola nas sondagens. Pelo andar da carruagem…’, e hesitou, ‘… o…’, e baixando muito a voz, quase num murmúrio, ‘Passos Coelho ainda é capaz de…’, benzeu-se, ‘… ganhar as eleições em 2015’. E Soares chorou convulsivamente outra vez. 

O cérebro de José Sócrates trabalhava agora a mil à hora: ‘O Passos ganhar não pode ser, se ele ganhar como é que eu ponho a mão no poder, não dá! Mesmo sendo Presidente da República preciso de um governo PS, estes gajos não me davam abébia. Não. O canálhe do Passos não pode ganhar!’ e, enquanto o outro limpava as lágrimas, Sócrates permaneceu apreensivamente calado. 

Mário Soares olhava-o agora com afectuosa curiosidade. E ali ficaram os dois em silêncio por uns breves instantes, apenas interrompidos pelo momento em que Mário Soares, tendo adormecido, soltou um sonoro ronco. ‘Acorda, pá!’, gritou-lhe o outro aos ouvidos. Estremunhado, Soares disse em surdina: ‘temos que o tirar de lá!’. ‘E…’, acrescentou ele ainda em registo de maior cumplicidade, ‘tens que ser tu, Sócrates, a avançar’. O outro quase que o beijava. ‘Que maravilha, o apoio de Mário Soares para ser candidato outra vez ao PS!’, pensou ele. E, felizes pelo acerto conspirativo, logo se puseram os dois a congeminar como fariam a coisa.

Às tantas, Mário Soares, perante as dificuldades que os dois antecipavam, deixou escapar um lamento: 'Ai Sócrates, foi por tão pouco que não conseguimos dar cabo do Passos o ano passado' e, depois de uma pausa, repetiu: 'por tão pouco, pá'. Sócrates interrogou-se sobre o que o chefe histórico do PS quereria dizer. O outro, como que entrevendo a perplexidade do seu interlocutor, relembrou: 'então quando o ano passado ligámos ao Salgado, pá, não te lembras?' Mas não, Sócrates não se lembrava.

Soares admirou-se, afinal nem ele tinha tão fraca memória. 'Como não te lembras, pá?', insistiu. 'Então não combinámos com o Salgado quando ele veio ter connosco por causa do banco... enfim... não ter dinheiro, não era?... lembras-te?', e calou-se como que esperando que Sócrates assentisse. Ora, o prisioneiro, que não se lembrava sequer de ter chegado àquela cela, logo tratou de concordar: 'Claro, pá, claro que sim', concordou ele titubeante. E, depois, a tentar sacar nabos da púcara, incitou: 'o gajo ligou e tu disseste-lhe que...', calando-se a ver o que o isco trazia de volta.

Soares mordeu: 'então, pá, combinámos que se o gajo conseguisse mandar o Passos abaixo que lhe dávamos o empréstimo quando chegássemos ao governo', explicou. 'Isso, isso', concordou Sócrates. E continuou a incitar o velho socialista a largar mais informação: 'e o gajo ia mandar o outro abaixo...', e pausou-se como que por cima de um precipício esperando que Soares lhe lançasse a corda. Este, estranhando, franziu o sobreolho: 'então mas como é que tu não te lembras disto?', perguntou desconfiado.

Sócrates desvalorizou: 'ó pá, então, a ideia foi tua, eu agora tenho estado com a cabeça mais nos meus estudos, pá, sabes como é que é, tu, um intelectual de craveira internacional, pá, um reputado filósofo, pá, um insigne pensador sobre a sociedade e o mundo, pá, tu, Soares, pá', continuava Sócrates para disfarçar, 'tu, um ícone, uma estátua viva', e o outro deliciava-se, 'um exemplo', continuava Sócrates, 'um farol de liberdade e de ética republicana para o mundo inteiro, desde a Venezuela a Angola, tu, pá,' e entusiasmava-se, 'o grande Soares, ó grande, grande, grande', continuava Sócrates subindo a cada palavra o tom, 'grande, grande, enorme, enormíssimo, o vulto maior da superior intelectualidade portuguesa, o pai...' e acrescentou, 'o pai e a mãe também, assim a modos que hermafrodita, porque foste só tu mesmo o único, só tu, sozinho, pá, o grande e excepcional criador da democracia portuguesa, o fundador da terceira república...', já gritava Sócrates, 'Mário Soares, o Grande, o Maior, o meu herói!' E, em lágrimas, Sócrates pôs-se de joelhos e beijou afectuosamente as mãos do seu visitante.

'Pronto, pronto', acalmou Soares puxando Sócrates para que este se levantasse. E, assoberbado com a torrente elogiosa de Sócrates, esqueceu-se da sua desconfiança. Já Sócrates, apesar de desmemoriado, mas ainda esperto, aproveitou a oportunidade: 'mas, mestre, pá, conta-me lá a conversa, o savoi faire com que fizeste a coisa... só para eu saborear as memórias, que é o que me resta', lamuriou-se. 'O que me resta são as memórias e os meus livros de filosofia', disse ele, apontando na direcção dos rolos de papel higiénico.

Soares não se rogou: 'está bem, está bem', anuiu, 'então, como te lembras, pá, o que eu lhe disse foi que ele tinha que ir falar com o outro...' Interrompeu logo Sócrates: 'qual outro', perguntou ele a talhe de foice. 'O outro', responde-lhe Soares. 'Mas qual outro', insiste Sócrates. 'Ora, o outro, pá, o...', engasga-se Soares. E Sócrates arrisca: 'o Baldaia?' 'Quem?', admira-se Soares, 'Baldraia...? Que nada, que nada, o outro, pá, do governo do Passos...' Sócrates estava em pulgas: 'o Gaspar?' 'Não'. 'A Albuquerque?' 'Também não'. 'O tipo que queria que o tratassem por tu?' 'Não, o outro', respondia Soares. Sócrates exasperou-se: 'mas qual outro, que outro, quem é o raio do outro', berrou ele aos ouvidos de Soares. Este, assustado, respondeu: 'o outro, pá'. Ao que Sócrates, lembrando-se da mítica cena do filme Pulp Fiction, já gritava 'diz outro outra vez! Diz outro outra vez!'

Em pânico, Soares lá se lembra de mais um pormenor: 'o outrrr... eh... aquele, pá, o do irrevogável'. Descompressão generalizada: 'Ahhhhhh, esse', aliviou-se Sócrates. 'Sim, sim', agarrou Soares igualmente aliviado, 'aliás, como tu sabes, pá, o Salgado foi lá falar com o homem e... prontes... combinaram aquilo, não é verdade?', disse ele em tom cada vez mais baixo. 'Pois, pois, claro que sim', concordou Sócrates. 'Foi um golpe quase perfeito', acrescentou Soares. 'Canálhe do Passos que não se demitiu', lamentou Sócrates. Soares anuiu: 'foi por pouco. E o outro... eh... o Salgado' emendou ele logo, 'foi ao charco', acrescentou pesaroso. Baixaram ambos a cabeça. Unidos na desgraça, os dois socialistas esqueceram o confronto e abraçaram-se de novo em lágrimas.

4

A Grande Evasão

Mal Soares, os seus devotos apoiantes e a banda filarmónica se foram embora, isto, naturalmente, apenas após nova passagem do hino nacional pelos altifalantes da cadeia, logo se pôs Sócrates a imaginar o que faria com este apoio de peso. Tal foi a excitação que já falava em voz alta: ‘Ah, sim, primeiro Secretário-Geral outra vez, depois Primeiro-Ministro de novo, sim, é isso, e depois…’, e ria muito, ‘esta não estão aqueles canálhes à espera’, e ria mais ainda, ‘… e depois candidato-me a Presidente da República!’ De súbito, ficou muito sério, e calou-se.

‘É capaz de ser difícil ser Primeiro-Ministro e Presidente da República ao mesmo tempo…’, consentiu por fim, e sentou-se no chão. Mas depois lembrou-se: ‘que nada!, posso simplesmente alterar a Constituição ainda como Primeiro-Ministro…’, o tom crescia progressivamente, ‘… para apenas depois assumir o cargo de Presidente, isto já com a Constituição nova!’ e, levantando-se, explodiu de alegria outra vez. ‘É isso’, gritava ele, ‘é isso mesmo!’, e José Sócrates já estava de novo tão excitado que teve que se amparar à primeira coisa que apanhou, azar o dele foi a corrente do autoclismo que, com o seu peso, partiu-se e o fez cair por cima da retrete. Depois, ao lembrar-se que estava ali preso, naquela horrível cadeia, de regresso ao seu Inferno particular, o candidato a Primeiro-Ministro-Presidente-da-República voltou a chorar.

Passados uns minutos, Sócrates acalmou-se dizendo a si próprio ‘tem calma, pá, tem calma, pá’, abanando a cabeça enquanto se bofeteava. Nesse momento, por entre a escuridão ouve-se um murmúrio. Sócrates calou-se de imediato. ‘Que será aquilo?’, perguntou-se. Uma voz, pareceu-lhe. A medo, lá perguntou: ‘está aí alguém?’. Ouviu-se uma espécie de restolhar metálico.

'Quem está aí?', exigiu Sócrates saber. 'Olhe que eu sou muito poderoso e chamo já o meu motorista!', acrescentou ele impondo respeito. O respigo metálico fez-se soar com maior intensidade. Seguiu-se uma voz: 'olá Zé, sou eu, o Carlos, estou aqui nas condutas de ventilação'. Foi aí que Sócrates compreendeu que os ruídos que ia ouvindo chegavam-lhe vindos do respirador que tinha a meio da sua cela, quase junto ao tecto. Correu para lá, chegando-se muito perto da grade metálica: 'Carlos...?', perguntou. 'Sim sou eu', responde-lhe uma voz ofegante agora bem audível.

'Ó Sr. Governador', começa Sócrates, 'como vai o senhor, está tudo bem lá pelo Banco de Portugal', pergunta na direcção da grade. 'Hum, o quê, qual governador?', estranha o homem escondido na ventilação. Sócrates franze o sobreolho: 'Não é o Carlos Costa, você aí?', pergunta intrepidamente. 'Quem? Costa...? Estás maluco, sou eu o Carlos', indigna-se o visitante. 'Mas qual Carlos, pá? Conheço muitos Carlos', justifica José Sócrates, começando a enumerar os múltiplos Carlos que conhecia: 'olha, por exemplo, o Cruz, aquele das botas botilde e que me ajudou com o euro 2004, depois há o Fino, aquele que era jornalista, e tens mais...', continuava ele imune à interrupções do Carlos que estava ali do outro lado da grade, 'tens o Queirós, o treinador, tens o... ó pá, são muitos, aliás não era o Cruz que estava preso, e tu estás aqui na prisão, não é verdade, cá para mim és o Cruz', decidiu-se por fim.

Foi nessa pausa que o outro finalmente se conseguiu fazer ouvir: 'Silva, pá, Santos Silva, o teu amigo de infância!', bradou ele. 'Hum, amigo de infância?', pergunta-se Sócrates. 'Não estou a ver, lamento. Cá para mim, aqui na cadeia, Carlos só estou a ver um, o Cruz e mais nenhum!', declarou ele. Santos Silva, triste, retorquiu: 'então, pá, ó Zé, pá, não te lembras de mim?', lamentou-se ele entre duas fungadelas. Sócrates continuou na sua. 'Não sei não, Carlos na prisão só vejo um, você não me diz nada, cá para mim isto é uma cilada', disse Sócrates desconfiado.

'Então, pá, ó Zé, pá, sou eu o Carlos, até te emprestei umas massas, não te lembras?', atira ele. E o outro responde logo muito afoito: 'massas, essa agora, eu não devo nada a ninguém, a minha Mãe, que poupou muito a esfregar escadas em Cascais como doméstica, é muito rica e empresta-me o dinheirinho para viver, não devo nada a ninguém que eu sou um homem sério!', vocifera Sócrates enquanto gesticulava muito para a grade que lhe falava.

O outro, o da ventilação e que dizia chamar-se Carlos, insistiu. 'Sim, sim, és muito rico e sério, eu sei, mas fui eu que te emprestei o dinheiro para o apartamento de Paris, e as obras, e o carro, e as férias com a Nanda lá no Algarve, e os jantares, e aquele fato muito jeitoso e que te assentava muito bem, assim meio cintado e com dois botões, aquele que compraste na Rodeo Drive quando puseram o teu nome no vidro da loja, lembras-te?', perguntou afectuosamente.

Sócrates não se convencia mas estava impressionado com os conhecimentos do outro. De repente, lembrou-se: 'ah, Carlos... sim, sim... tu és aquele moço lá das fotocópias, não é?', pergunta ele. O Carlos das fotocópias encantou-se: 'sim! Sim! Esse mesmo! Ah, que alívio Zé, estava a ver que não te lembravas de mim...', e quedou-se na conduta, com a cabeça guardada nos antebraços, profundamente agradecido pelo reconhecimento.

'Sim, sim, estou a ver perfeitamente quem és, não te preocupes', assegurou Sócrates. 'Então e que fazes aí na conduta?', perguntou ele curioso. 'Santos Silva responde: 'ora, então, trago-te aqui umas fotocópias que pensei que pudesses precisar, claro, né?'. Sócrates replica: 'Ora, muito obrigado, mas não preciso. Aqui não há necessidades de fotocópias. Adeusinho então', e vai sentar-se no seu canto já habitual.

Carlos ficou sorumbático. 'Não há nada em que te possa ajudar?', insistiu ele em voz mais baixa, taciturno. Sócrates matutou sobre a possibilidade. Por fim, respondeu: 'a única coisa que me dava jeito era sair daqui para preparar o meu regresso político', atirou. 'Mas não vejo como me possas ajudar nisso', lamentou ele. Carlos agarrou logo o osso: 'no que eu puder ajudar, conta comigo!'.

Sócrates reflectiu sobre o assunto. De repente, teve uma ideia: 'Ah, já sei!', exclamou, 'se tu conseguiste chegar até aqui pela conduta de ventilação então, se calhar, eu também posso sair daqui por aí!', alvitrou. Carlos maravilhou-se com o rasgo do outro: 'ah, que portento de ideia! É que é bem capaz de ser verdade: se eu cheguei até aqui por aqui então tu podes ir por aqui para ali!', e apontou com a mão esquerda para a direcção que lhe ficava nas costas.

José Sócrates, frio e calculista, quis assegurar-se do génio do seu brilhantismo e confirmar que estavam a ver bem a coisa: 'Espera, temos que pensar em todos os prós e os contras desta complicadíssima operação', disse ele pondo água na fervura entusiástica do outro. 'Ora', recapitulou ele, 'se tu chegaste até aqui por aí então eu posso fugir daqui', e pausou, 'por aí!', concluiu enquanto, com o entusiasmo de Arquimedes aquando do seu momento 'eureka', apontava na direcção da grade.

Santos Silva, embevecido, deteve-se em transe: que privilégio ver o génio de Sócrates em acção. No entanto, ocorreu-lhe um pequeno entrave: 'Ó Zé...', tentou alertar, mas sem sucesso pois Sócrates pulava na cela com a possibilidade de fuga que a sua rasgada visão tinha conseguido vislumbrar na penumbra daquela cela húmida e fria. 'Zé!', gritou Carlos mais alto ainda, conseguindo assim a atenção do político.

'Que é, pá', enxofrou-se Sócrates pela interrupção. Santos Silva, desculpando-se, esclarece: 'ó Zé, desculpa lá, pá, eu sei que... enfim... é uma grande ideia, mas... eh... e como é que... ehh...', engasgou-se ele. Sócrates, impaciente, berrou-lhe na direcção do respirador: 'desembucha logo, pá'. 'Ó Zé', continuou o outro a medo, 'então e a grade', perguntou por fim.

'Como assim "a grade", que queres tu dizer com isso', perguntou o genial político prisioneiro. 'Ora', responde o outro ainda meio a medo, 'como é que passas pela grade? Os espaços são muito fininhos!', explicou ele. Sócrates empalideceu: 'arghhhh, tem sempre que haver um problema!', e, gesticulando com os punhos no ar, começou a gritar: 'merdeputecanalhe, sempre os meus inimigos a conspirarem contra mim, agora puseram aí essa grade, como é que eu saio daqui, porra?'. E Sócrates começou a chorar de novo.

Santos Silva angustiou-se perante o desalento do amigo. Resolveu contribuir com uma ideia: 'se calhar', começou ele, ' se tu puxares a grade e eu ao mesmo tempo empurrar daqui... enfim... talvez ela saia...', disse ele a medo. O outro, ainda de lágrimas na cara, irritou-se perante o absurdo da estupidez do seu interlocutor. 'Sua besta', gritou Sócrates, 'que ideia mais estúpida, és uma besta, uma besta', vociferou ele ferozmente e, levantando-se num ápice, com a raiva, começou aos murros na grade.

Carlos, assustado e arrependido do seu próprio dislate, instintivamente, protegeu-se forçando com as mãos o seu lado da grade contra os murros de Sócrates. Para espanto dos dois, entre os murros do prisioneiro e a força do ajudante, inesperadamente, a grade soltou-se e foi cair em cima dos pés de Sócrates com estrondo.

'Ai que me mataste', gritou Sócrates agarrando-se de imediato aos pés descalços que latejavam de dor. 'Sua besta, sua cavalgadura de merda, sua mula, magoaste-me, ó alimária estúpida e idiota', grita Sócrates na direcção de Santos Silva que, agora, sem a protecção da grade se encolhia perante a fúria do seu amigo.

'Desculpa, desculpa', repetia Carlos Santos Silva ininterruptamente enquanto o outro gritava e esperneava. Passados uns minutos, finalmente, Sócrates calou-se. Aproveitando o silêncio, Carlos, em surdina, arriscou: 'Zé', sussurrou ele, 'agora que a grade caiu, se calhar, podes sair por aqui', e acanhou-se ainda mais. Sócrates, lá em baixo, reagiu com a rapidez dos génios: 'Ah que grande ideia que eu tive!', gritou ele. 'Agora que a grade caiu eu posso sair por aí!', e começou, apesar da dor, a rir com a perpspectiva de, após tanto plano e sacrifício, tanta inspiração e inteligência, conseguir por fim ver a luz no final de um túnel que o levaria à merecida libertação.

'Sai daí', ordenou Sócrates ao outro e, agarrando-o pelos colarinhos, atirou-o para o chão da cela. Depois, pondo-se em cima dele, içou-se a si próprio para dentro da conduta. Veloz como sempre soube ser, Sócrates rastejava agora para a liberdade. Ainda teve tempo para ouvir, bem lá ao fundo, a voz de Santos Silva que, gordo e sem alguém que o ajudasse, não conseguindo içar-se para o respiradouro, se resignava à sua nova condição de prisioneiro: 'obrigado Zé, meu querido amigo, se precisares de mais alguma coisa avisa!', gritou ele esperançado que o fugitivo ainda o ouvisse.